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quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Desdentados nos EUA


Patrícia Campos Mello, na Folha de São Paulo de 04/01

Em maio de 2009, pouco antes de a GM declarar falência, estive em Detroit para escrever sobre a decadência da indústria automobilística e seus efeitos sobre a cidade. O cenário lembrava Nova Orleans pós-Katrina, embora Detroit não tivesse sido varrida por um furacão. 

Casas abandonadas por toda a parte. Algumas haviam sido queimadas, para não serem ocupadas por viciados em crack. E muita, muita gente sem dentes. Em todo canto, havia americanos desdentados, na maioria negros. Em plenos EUA, as pessoas não tinham dinheiro para consertar os dentes.

Em 2010, depois de passar quatro anos nos EUA, voltei ao Brasil. Uma das coisas que me espantaram foi a quantidade de anúncios, em revistas e no rádio, de implantes dentários em prestações. Depois do frango, do iogurte e da TV de tela plana, a classe C agora podia ter dentes, em módicas parcelas.

Os papéis se inverteram. Os EUA, a maior sociedade meritocrática do mundo, está cada vez mais desigual. Enquanto isso, o Brasil, país símbolo da imobilidade social, melhora.

Ainda temos uma das maiores desigualdades do mundo. O coeficiente de Gini -em que zero corresponde à igualdade perfeita e um refere-se à desigualdade total- está em 0,539 no Brasil, um dos piores do mundo. Mas, desde 1985, tivemos uma melhora de 10%.

Nos EUA, onde o índice está em 0,468, houve piora de 34% no período. Entre 1979 e 2006, a renda dos americanos de classe média teve aumento real de 21%. Os mais pobres tiveram alta na renda de apenas 11%. Já o 1% mais rico viu seu rendimento crescer 256%.

Mas a piora na distribuição de renda dos EUA não afeta apenas a classe média. A desigualdade está no cerne da crise financeira que eclodiu em 2008, como mostra Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do FMI e "cassandra" de plantão, em seu livro "Fault Lines - How Hidden Fractures Still Threaten the World Economy". "A resposta política para o aumento da desigualdade foi expandir o crédito para as famílias", diz Rajan.

Em vez de investir em educação, o que demoraria anos para ter efeitos reais (e eleitorais), sucessivos governos americanos foram pela via mais fácil: compensar a queda de remuneração da classe média com crédito barato, facilitando hipotecas, mantendo taxas de juros baixíssimas, ou seja, possibilitando toda a farra de endividamento que foi combustível para a crise.

Os benefícios eram visíveis a curtíssimo prazo e a conta demorou para chegar. Mas quando chegou, quebrou o país.

Resta ver se a política de expansão de crédito e transferência de renda no Brasil não está também mascarando problemas mais profundos e vai apresentar uma conta salgada daqui a pouco.

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